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Santos, capital do motociclismo na América do Sul

O trabalho de pesquisa histórica é um movimento sem fim, e como venho repetindo em meus encontros e conversas, é algo que não se faz sozinho. No final do ano passado estive em Santos a convite do amigo Luiz Bezzi Pasquarelli, ele próprio um dos herdeiros de uma das mais tradicionais famílias do motociclismo brasileiro. Além de me levar para conhecer os tradicionais circuitos de rua da cidade (sim, as ruas dos dois principais traçados ainda estão lá), me presenteou com um encontro na oficina do preparador Reinaldo Campos com seu tio Franco Bezzi, hoje com 90 anos, e umas coisinhas mais que em breve serão publicadas.

Este foi um dos preparativos iniciais para mais um dos “Encontros Motostory: Os Filho de Santos”, que pretende contar a trajetória da motocicleta na história daquela cidade, que é um dos portos mais importantes do país, e seus principais personagens. Afinal, a cidade não foi, ou é, apenas uma das principais portas de entrada do Brasil, mas também possui uma rica história de pioneirismo, comercio e competições quando o assunto é motocicleta.

Como não acredito em coincidências, no mesmo dia da minha visita a Santos, o historiador Sergio Willians, responsável pelo Memória Santista, publicou a matéria que vocês lerão abaixo, e que nos foi gentilmente cedida por ele. O Memória Santista também está envolvido na organização do nosso próximo evento e em breve teremos definidos local e data. Não percam!

Reportagem: Sergio Willians – Memória Santista

SANTOS JÁ FOI UMA DAS CAPITAIS DO MOTOCICLISMO NA AMÉRICA DO SUL

A história do motociclismo no Brasil se inicia entre os anos de 1907 e 1909, período em que chegavam ao país os primeiros veículos de duas rodas motorizados (também vieram nesta época alguns triciclos e sidecars), utilizados inicialmente como meio de locomoção. Em 1914, na capital paulista, um grupo de motociclistas, então, resolve fazer de suas máquinas um instrumento esportivo, promovendo competições de velocidade na região do Viaduto do Chá. (Obs. Motostory: existe um anúncio publicado no Jornal O Estado De São Paulo em 29 de Agosto de 1904, sobre uma “Peugeot 1904 2,5 HP, bem conservada.” Isso nos leva a crer se tratar de uma moto usada.)

Corrida de motocicletas em Santos, 28 de junho de 1964. O piloto é o paulistano Luiz Celso Giannini, da categoria até 50 cm³. Ele faz a curva na avenida Siqueira Campos, Canal 4. Em 1971, Luiz Celso foi um dos primeiros brasileiros a disputar um GP válido pelo Mundial de Motociclismo. Estreou junto com Adú Celso Santos que, em 1973, tornou-se o primeiro brasileiro a ganhar um GP de moto. Foto gentilmente cedida por José Pedro Giannini, filho de Luiz Celso.

Onze anos depois, em 1925, surge a Federação Paulista de Motociclismo, com o objetivo de organizar campeonatos e reunir os aficionados pelo novo esporte. Após o veículo conquistar o mercado em outras cidades do país, em 1948 surgia a Confederação Brasileira de Motociclismo (CBM), que logo se filiaria à Federação Internacional de Motociclismo (FIM) com vistas a promover campeonatos de caráter mundial dentro do Brasil, além de assumir a tarefa de normatizar, entre os pilotos brasileiros, os métodos para as suas participações em competições no exterior, em especial na Europa e Estados Unidos, onde a modalidade já possuía milhares de adeptos. Na década de 1950, o Brasil já mantinha um calendário de provas à altura das expectativas internacionais e Santos se apresentava como uma das localidades que mais imprimia apoio ao esporte.

Em função do porto, principal via de entrada das grandes novidades motorizadas vindas da Europa e Estados Unidos, os santistas aproveitaram tal vantagem para montar um dos primeiros “Motos Clubes” do Brasil, fundado em 13 de junho de 1931, e tendo como sócios fundadores figuras como Luís Muniz, J. Carvalho, Luís Bezzi, Carlos Andrade, Eduardo Ferreira, Clarence W.Taith, Helmuth Hoffmann, Fred Krenitenstein, João Polo e Arnaldo Costa.

 

Santos Moto Clube

Os membros do Santos Moto Clube rapidamente apresentaram um calendário de ações que chamou a atenção da Federação Paulista, fazendo com que a cidade logo passasse a sediar provas de velocidade, que ocorriam nas ruas santistas. Muitos dos pioneiros e principais pilotos da história do país participaram, no início de suas carreiras, das provas santistas, caso de Adú Celso (conhecido como “Índio Brasileiro”), primeiro brasileiro a vencer uma prova internacional, em 1973, na Espanha (ele chegou inclusive a morar em Santos, com os pais). Outro grande nome foi Luiz Celso Gianinni que, ao lado de Adú, foi um dos pioneiros em provas internacionais. O piloto praticamente iniciou sua trajetória nas ruas santistas e chegou a contar algumas peculiaridades do tempo em que corria na cidade praiana, que era tida como dona de um dos grandes circuitos de rua do Estado de São Paulo. “Lembro de uma prova em Santos em que uma das referências de traçado era uma mancha de óleo em um ponto de táxi

 

A corrida de 1949

A prova de 1949, anunciada como “Circuito Fechado da Avenida Afonso Pena”, foi uma das mais emocionantes ocorridas pelas ruas de Santos. Na foto, vê-se a moto Nº 46, de Edgard Soares, a Nº 20, de Edvard Pacheco, a Nº 1, de Luiz Bezzi, a Nº 12, de Orlando Guardino e a Nº 18, de Osvaldo “Índio” Diniz – Foto Memória Santos

Dentre as várias provas ocorridas nas ruas de Santos, cabe destacar o “Circuito Fechado da Avenida Afonso Pena”, promovido pelo Santos Moto Clube, como um dos mais emocionantes ocorridos em Santos, merecedor de extensa reportagem na revista “Motociclismo”, em sua edição de dezembro de 1949.

Sob um calor causticante, foram disputadas no dia 27 (de novembro), as provas em prosseguimento ao Campeonato Paulista de 1949. A organização coube ao Santos Moto Clube, que apesar do atraso de hora e meia para o início das corridas, soube proporcionar ao povo santista, fã do motociclismo, um espetáculo bom, principalmente na classe de máquinas especiais. As outras categorias foram despidas do sensacionalismo a que estão acostumados os adeptos desse arrojado esporte, devido, principalmente, ao pequeno número de participantes e o elevado número de desistentes. Afora isso, nas categoria 500 cc Especial os pilotos fizeram a enorme assistência de 15.000 pessoas ter momentos de entusiasmo e expectativa.

O local das corridas, já conhecido pela maioria dos pilotos, foi o mesmo de outras provas disputadas no pós-guerra, formado pela Av. Afonso Pena, Rua Osvaldo Cruz, Rua Lobo Viana, Av. Siqueira Campos (ou do Canal), e novamente Av. Afonso Pena, formando aproximadamente um quadrilátero desigual, medindo 2.000 metros.

 

O desenrolar das provas:

Aproximadamente às nove e trinta, foi dada a largada para as máquinas de pequena cilindrada (250 cc) as quais percorreram 15 voltas no circuito, na distância total de 30 quilômetros.

Latorre desde o início tomou a dianteira, mantendo-se na primeira colocação até o final. O único piloto com possibilidades de oferecer alguma luta ao vencedor era Joaquim Alves, vencedor da 1ª prova do campeonato, o qual no entanto foi traído por sua máquina. Apresentando sérios defeitos, foi perdendo terreno até o momento em que abandonou a prova.

Sebastião dos Santos, outro que poderia acirrar a disputa, também desistiu logo após a largada, e finalmente Pio Pastore, representante do Serra Negra Moto Clube, caiu numa das curvas, sem graves consequências.

As provas em Santos eram observadas por um número enorme de curiosos e fãs do motociclismo. (Foto Memória Santos)

Dessa forma, ficaram disputando a prova Latorre, folgadamente na primeira colocação, e Alfredo Faletti, do Santos Moto Clube, na segunda, sem mais ninguém na pista. Tivemos assim uma corrida de campeonato sem interesse algum, sem nenhum lance que pudesse tirar poucos aplausos por parte do numeroso público assistente.

Resultado da classe 250 cc

1º – Luis Latorre – São Caetano Moto Clube – Guzzi – 30 Km em 26’49″ – volta mais rápida (2ª) em 1’37″ média de 74,2 km/h

2º – Alfredo Faletti – Santos Moto Clube – Jawa

A prova para máquinas de 350 cc e 500 cc

Após um intervalo de mais de vinte minutos, foi dada a largada para as classes de 350 cc e 500 cc, numa única prova, com classificação em separado. Tivemos nessas categorias o mesmo desenrolar da classe 250 cc. Dos muitos inscritos, poucos compareceram e ainda menos terminaram.

A única alteração foi a pequena luta travada entre Gaeta e Pagotti nas máquinas 350 cc. Nada mais que uma mudança de colocação. Gaeta liderou até aproximadamente o meio da corrida, cedendo depois o primeiro posto a Ângelo Pagotti. Somente os dois disputaram a categoria 350 cc, dos seis que estavam inscritos.

Luiz Bezzi, um dos fundadores do Santos Moto Clube, ladeado pelo Prefeito de Santos, Sr. Rubens Ferreira Martins e Eloy Gogliano, Diretor da revista “Motociclismo”, à esquerda, momentos antes da partida (Obs. MS. – Eloi Gogliano foi também um dos capitães do Centauro Motor Clube, fundador da FM e da CBM) Foto Memória Santos

Resultado da classe 350 cc

1º – Angelo Pagotti – Piratininga Moto Clube – Velocette – 60 Km em 32’2″.

2º – Angelo Gaeta – Centauro Moto Clube – DKW  – 32’13″

Para o desenrolar da categoria 500 cc, nada temos a falar. Repetimos apenas que a mesma decorreu num ambiente de monotonia, sem luta e quase sem novidade, pois o resultado obtido era esperado por todos, ou seja a vitória de Osvaldo Diniz.

Resultado da classe 500 cc

1º – Osvaldo Diniz – Piratininga Moto Clube – Velocette KTT – 60 km em 25’50″

2º – Artur Della Nese – São Caetano Moto Clube – Royal Enfield 

3º – Oliveiros Teixeira – São Caetano Moto Clube – Matchless 

A prova para máquinas especiais até 500 cc

Depois de uma espera de mais de 25 minutos, aproximadamente às 11 e 20 minutos foi iniciada a principal prova do programa, não só por se tratar de possantes máquinas de corrida, como também por contar com a presença dos mais destacados pilotos paulistas, todos imbuídos de uma vontade férrea de proporcionar um espetáculo digno de registro. 

A corrida só não foi totalmente coroada de glória exclusivamente pelo elevado número de desistentes.A luta entre os favoritos , Edgard e Caio, baluartes do motociclismo bandeirante, foi titânica, empolgante e honesta e deixou o público em crescente expectativa.

Ao ser baixada a bandeira preta e branca, Franco Bezzi em sensacional arrancada pulou na dianteira com sua BMW SS, fato esse que deixou a torcida santista delirar de entusiasmo, pois como se sabe, o filho do conhecido Bezzi é praiano. Caio Marcondes Ferreira que havia atrasado bastante na largada, ou melhor, na primeira volta, nas duas seguintes conseguiu recuperar o tempo perdido e passar para a liderança.

O primeiro a desistir foi Franco Bezzi, que parou na quarta volta, por defeito na máquina. Tivemos então alguma voltas sem alterações com as seguintes posições: Edgard, Caio e Pacheco formando um bloco compacto, havendo entre eles pequena diferença, de poucos metros. Na quarta colocação e correndo com firmeza, vinha Luiz Bezzi, mais atrás Orlando Guardino, seguido dos pilotos Razzante e Osvaldo Diniz.

Em plena corrida na Avenida Afonso Pena, nas primeiras voltas a ordem era: Edgard Soares (46), Pacheco (20) e Caio (15). Foto Memória Santos

Na 9ª volta, Orlando Guardino é o segundo a parar, também por defeito em sua máquina.Na 13ª volta outra decepção para os santistas, com a desistência de Luiz Bezzi com sua Norton, por causa de um pneu traseiro furado.Somos da opinião que se Bezzi não tivesse parado seria possivelmente o segundo ou terceiro colocado.Três voltas mais adiante, depois de espetacular derrapada e um pequeno tombo sem consequências físicas, parou Arnaldo Razzante, com sua veloz Guzzi-Dondolino. No entanto, depois de ficar no box por mais de 30 voltas e percebendo que no final da competição restavam somente três concorrentes, retornou à pista, conseguindo a quarta colocação, e um ponto para sua classificação geral no campeonato.Assim, desde a 20ª até a 40ª volta, dos oito que largaram, sómente quatro continuavam na disputa, prosseguindo em escala cada vez maior a luta entre Caio e Edgard. 

Por várias vezes a dupla passou a ser um trio quando dos dois ponteiros se aproximava perigosamente o jovem Pacheco.No entanto, poucas voltas depois, novamente escapavam Caio e Edgard, deixando para trás o popular “Escoteiro”.Este, apesar dos seus esforços parou na 43ª volta, perdendo assim valiosos pontos para a conquista do título de campeão.Foi aí que seu companheiro de clube, Caio Marcondes, ao notar a desistência de Pacheco, puxou mais e mais pela corrida, chegando a levar vantagem de mais de dez segundos sobre o valoroso Edgard.

Nessa altura da prova, todos contavam com uma vitória certa do defensor do Centauro Moto Clube, quando, para o espanto geral, faltando poucas voltas para o término da corrida, começou a dar para trás, perdendo valiosos segundos por volta, o que permitiu a Edgard Soares ameaçar novamente a primeira colocação. 

O piloto do Piratininga, percebendo a situação, também puxou um pouco mais e conseguiu sobrepujar Caio, colocando-se na liderança até o final.

Tivemos na magnífica exibição desses dois rapazes, que são indiscutivelmente, no momento, os “maiorais” do nosso motociclismo bandeirante, um espetáculo que ficará gravado por muito tempo. Os dois correram como valentes defensores de seus clubes, procurando tudo fazer para conseguir aquilo que desejavam: as primeiras colocações na segunda prova do Campeonato Paulista de 1949.

Resultado da classe 500 cc especiais

1º – Edgard Soares – Piratininga Moto Clube – Norton – 120 km em 1h26’33″ 

2º – Caio Marcondes Ferreira – Centauro Moto Clube – Norton – 120 km em 1h27’40″ – recordista de volta, na 45ª tempo de 1’23″ com média de 86,74 km/h.

3º – Osvaldo Diniz – Piratininga Moto Clube – Velocette KTT – 1h27’43″

4º – Arnaldo Razzante – São Caetano Moto Clube – Guzzi – Parou na 16ª volta e voltou na 49ª, completando a prova com 27 voltas.

O fim das provas de rua

Assim, por algumas décadas, as ruas de Santos, pelo menos uma vez ao ano, abrigavam as sensacionais provas de motociclismo promovidas pela Federação Paulista em conjunto com o Santos Moto Clube. Porém, diante do crescimento urbano santista e o surgimento de autódromos (também utilizados para corridas de motos) em algumas cidades do interior, as provas de ruas em Santos foram se extinguindo e a cidade praiana passou a não constar mais no calendário oficial da modalidade, deixando um rastro de saudade e aquele cheiro característico de óleo queimado no ar.

Tempos glamorosos de um esporte que deixou marcas indeléveis na cidade.

, à direita, felicita Angelo Pagotti, que o sobrepujou na prova de 350 cc. em 1949 – Foto Memória Santos

Para saber mais sobre o trabalho de Sergio Willians visite:

http://memoriasantista.com.br

 

 

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