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Uma Viagem de Motocicleta ATRAVÉS DOS ANDES – parte 2

Nota do Editor de Motostory: As continuações da reportagem sobre “Os destemidos Bandeirantes” originalmente publicadas em 1950, nas edições 6, 7 e 8 da revista Motociclismo, respectivamente março / abril, maio / junho e julho / agosto, foram gentilmente cedidas pela família Edgard Soares e seu maravilho acervo, emprestado ao Motostory para o desenvolvimento de nosso trabalho. Aqui, a segunda parte da reportagem.

 

“Em Curitiba visitamos o digníssimo Dr. Guataçara  Borba Carneiro, Governador Substituto, a quem entregamos uma mensagem do nosso estimado Governador, o grande democrata brasileiro Dr. Ademar de Barros.

Mantivemos com o ilustre Governador do maravilhoso Estado do Paraná uma palestra muito animada e cordial, tendo ele consignado em nosso “diário” as seguintes impressões:

“É-me grato registrar a visita, ao Paraná, dos valorosos patrícios Ayres Nogueira, Dr. Bernardo Ciambelli, Dr. Ciro P. Oliveira e José Lamoglia Netto, modernos bandeirantes que nos trazem o abraço fraternal do nobre povo paulista. CURITIBA, 24-1-1949. Guataçara Borba Carneiro (Gov. Substituto)”

 

No artigo anterior, quando falamos sobre assuntos referentes à nossa primeira etapa, deixei claro que algo muito importante movimentava as nossas reuniões que se verificavam após as refeições no hotel, em Curitiba. Neste artigo, vamos falar sobre o assunto que tanto agitou os nossos temperamentos latinos, pondo em suspenso as diversas regras sociais e humanas. Devido aos acidentes ocorridos na primeira etapa, surgiu a seguinte pergunta: EM CASO DE MORTE POR ACIDENTE, OU MESMO DEVIDO A OUTRAS CAUSAS, em que fosse envolvido qualquer dos membros da CARAVANA, a viagem DEVIA OU NÃO CONTINUAR? Não me recordo de qual o autor da pergunta, muito oportuna e lógica, sei apenas que o problema nos pareceu grave e a sua solução parecia urgente, uma vez que íamos enveredar por estradas desconhecidas e bastante acidentadas, com trafego muito reduzido , longe portanto de locais com assistência imediata e pobre em socorros urgentes. Sabíamos, por isso, o  risco a que nos estávamos expondo, e , assim, todas as medidas deveriam ser tomadas com minúcias de detalhes, a fim de não ser prejudicado o nosso principal objetivo: Santiago do Chile. Promovemos, como aliás fazíamos em todos os assuntos que envolvessem a segurança de um ou de todos, uma “VOTAÇÃO” em que cada um tinha o direito de defender o seu voto, com a exposição que julgasse conveniente, pelo tempo contado de 10 minutos, sem interrupção de “apartes”.

Foto publicada na reportagem Através dos Andes da Revista Motociclismo número 6 de janeiro / fevereiro de 1950 – a legenda diz: “Ayres Nogueira aponta o rumo a ser seguido.”

 

Na primeira “votação” a discussão se prolongou pelo espeço de 3 horas, sem que ficasse decidida a questão, pois que no final apuramos 2 votos a 2.

Decidimos que, enquanto se esperava a roda que, seria enviada de São Paulo por via aérea, estudaríamos o assunto com mais cuidado, sendo como era de grande importância. Eu, pessoalmente votei contra a discussão do “caso”, visto achar que, sendo a nossa viagem puramente esportiva, sem objetivos de maior importância, não comportaria medidas tão drásticas e violentas como a de remeter um companheiro morto a São Paulo e prosseguir viagem que provavelmente perderia todo o encanto, após acontecimento tão desagradável. No dia seguinte porém, o assunto voltou a ser ventilado e foi aprovado por 3 votos a 1 o seguinte:

  • Em caso de morte o cadáver seria remetido por via aérea, para a respectiva família, com um acompanhante que nomearíamos e com as homenagens da “CARAVANA”; o mesmo seria feito em caso de acidente grave que impossibilitasse o acidentado de dirigir a motocicleta por espaço superior a dois dias.

 

Nesta mesma noite, às 8 horas, recebemos a tão encantada roda, fomos à oficina e lá não encontramos o proprietário: assim mesmo, como a oficina estava aberta com um garoto a tomar conta, resolvemos nós mesmos colocar a roda. Às 10 horas estavam todas as motocicletas prontas para a nova etapa, que deveria ser iniciada no dia seguinte, pela madrugada.

Anúncio do então importador da Triumph para o Brasil, Thornycroft Mecânica e Importadora, Rua pedroso, 220 – Fone 7-5866 – Caixa Postal 2960 – São Paulo, foi publicado na Revista Motociclismo número 6 de janeiro / fevereiro de 1950 em apoio à viagem feita com as motocicletas da marca inglesa.

 

No dia 26 de outubro, levantamos as 5 horas da manhã. Chovia a cântaros (falta de sorte) pois nos dois dias que ficamos em Curitiba, o tempo estava firme. Às 5 ½ partíamos debaixo de uma chuva torrencial e não víamos possibilidade de melhorar o tempo. Rumamos para o próximo lugarejo (Santo Antonio). Verificaram-se algumas derrapagens se que houvessem propriamente “aterrizagens”, considerando-se que as velocidades tinham que ser inferiores a 60 k.p.h. A lama e o estado precário da estrada eram desanimadores. Protegidos com as capas de material plástico, tínhamos um conforto relativo, na parte superior do corpo; as pernas, embora protegidas pelas botas, estavam em situação bem desagradável. Contudo, a viagem prosseguia com velocidade reduzida, porém constante, sem as “paradas” desnecessárias; e, assim, depois de 3 horas de viagem atingimos a Serra das Minas, ainda no Estado do Paraná. Neste trecho, além da chuva que continuava a cair, tínhamos como presente dos céus, a neblina paulistana; a lama era tanta, que a parte inferior da moto chegava a arrastá-la. As derrapagens deveriam ser evitadas ao máximo, pois que a estrada é estreita e os precipícios são profundos… Finalmente vencemos esta Serra, que nos parecia interminável; a chuva continuava a cair impiedosamente, e nossos estômagos começavam a reclamar combustível e os nossos nervos pediam pausa àquela tensão nervosa que ataca o motociclista que anda sobre terreno molhado e sobretudo barrento. Na divisa dos estados do Paraná e Santa Catarina, paramos numa venda onde tomamos um suculento café completo acompanha de “chouriço catarinense”, afamado em todo o Brasil. Seriam 10 horas da manhã, por isso demos aos nossos estômagos “um pouquinho do tanto que eles queriam”, o bastante para recomposição das forças. Aos nossos nervos demos um descanso de 20 minutos, após o qie montamos novamente com destino ao litoral catarinense, ou seja, a cidade de ITAJAÍ. A chuva continuava, menos pesada, porem a estrada primária e estreita dava-nos sustos constantes.

 

Nas proximidades da alegre e progressista cidade de Joinvile, a chuva desapareceu; entretanto, o sol atendia outros assuntos… em outro mundo. Entramos em Joinvile, paramos em um posto de gasolina onde fomos imediatamente cercados por Joinvilenses, que nos faziam centenas de perguntas. Ficamos encantados com a educação social e esportiva daquela gente. Moças e rapazes, em número incrível, senhoras e senhores idosos utilizavam-se de motocicletas e especialmente bicicletas, como meio de locomoção e esporte. Gente muito hospitaleira, fomos recebidos pelo Sr. Oswaldo Pinheiro, presidente do Moto-Clube local, que nos proporcionou atenções desvanecedoras; os jornais locais publicaram no dia seguinte a nossa passagem pela cidade, em termos muito elogiosos conforme recortes que posteriormente nos foram enviados por gentileza do Sr. Oswaldo Pinheiro. Infelizmente não pudemos conviver com aquela gente tão boa por mais de meia hora, pois tínhamos pressa em atingir, ainda naquele dia, a capital do estado (Florianópolis).

 

Seguimos imediatamente para ITAJAÍ, cidade litorânea, onde fizemos uma refeição mais completa. Descansamos 30 minutos e rumamos diretamente para Florianópolis. Às 7 horas da noite, a 12 quilômetros do final da nossa segunda etapa, a câmara de ar da motocicleta do dr. Bernardo Ciambelli, que estava sendo pilotada por Ayres Nogueira, furou devido a um prego; felizmente era a roda da frente. Para trocar a câmara perdemos 30 minutos. Chegamos a Florianópolis as 8 da noite, nos instalamo-nos um hotel e, depois de um banho duplo, procuramos o berço… o cansaço não era grande, os músculos já se tinham habituado com os esforços que exigimos na primeira etapa.

Foto publicada na reportagem Através dos Andes da Revista Motociclismo número 6 de janeiro / fevereiro de 1950 – a legenda diz: “nossos modernos ciganos encontram-se com seus verdadeiros confrades.”

Pouco adiante de ITAJAÍ, colhemos duas fotografias de um autêntico grupo de ciganos, que ali estavam à margem da estrada, para ler ou descrever a sorte dos transeuntes incautos. Quando eles viram a aproximação das motocicletas roncando como quadrimotores, supuseram que tratava-se da polícia, ou talvez da bomba atômica. Paramos e, com dificuldade, conseguimos fazer aquela gente sair do mato para uma fotografia. O interior do Estado de Santa Catarina, sobretudo o litoral, é de uma beleza indescritível. Margeamos o litoral por muito tempo: o mar ali é contido por uma linha rochosa contínua e impressionante, cuja altura chega a atingir até 100 metros a prumo.”

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