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- Author: motostorybr
- Posted: October 19, 2017
- Category: Histórias
A FÚRIA DO PADEIRO
Por Josias Silveira
Publicado originalmente em Auto Entusiastas e autorizado a dividir com voce, fã do Motostory, pelo próprio autor.
Nota do Editor de Motostory: “Conheci Josias Silveira no final da década de 70, quando meu pai começou a frequentar a redação de Duas Rodas e a fazer parte de algumas reportagens sobre o fora de estrada. Na edição de outubro de 1979 eles fizeram juntos uma reportagem sobre a prática do “Trail – Os passeios Fora de Estrada” lá em Alphaville, Barueri. Com eles na reportagem estavam o Carlinhos Bittencourt, o Bitencas, e o Julio Carone, ou Tio Julio. Era a primeira vez que o pai aparecia em uma reportagem de capa, impulsionada pela chegada da Yamaha TT 125 e da Honda FS 125, esta ultima criação do Eduardo Machado, o Dudu. Mas, estas são outras histórias. O fato é que o Motostory ganhou de presente um de meus primeiros mestres, o jornalista Josias Silveira, e suas deliciosas criações. Aproveitemos.
“Olhei pela janela e vi algo que viralizou, pelo menos em São Paulo. Um padeiro ambulante, que leva um enorme cesto de pães em uma moto. A padaria delivery também voltou a se popularizar com bicicletas, depois de décadas de desaparecimento.
Minha cabeça voltou no tempo, ainda mais que acabamos de passar o Dia das Crianças, e lembrei-me da minha primeira vez. Aliás, das minhas primeiras vezes. Fica calmo que o padeiro aparece lá pelo meio de mais esta história do Tio.
Eu era garoto, tinha uns 11 anos e morava em Curitiba (PR). Andava de bicicleta (e Curitiba tem muita pirambeira, morros para tudo quanto é lado) morrendo de inveja de quem tinha moto, Lambretta ou Vespa, já que as avós dos scooters atuais estavam na moda. Aliás Lambretta até hoje é o termo genérico para scooter, da mesma forma que Gillette é sinônimo de lâmina de barbear. Na subida, pedalando e suando como um cretino, sempre passava alguém com um motorzinho dois-tempos todo sorridente, jogando fumaça na minha cara. Eu sonhava em também ter um acelerador no punho direito.
Um amigo tinha um irmão, um “velho” que tinha mais de 20 anos, já estudava medicina e tinha uma “noiva” bonitinha e bem pentelha. Mas, ele era nosso ídolo, pois andava de Lambretta (uma LD 125, acho que de 1957) com side-car. Claro que a “penta” da noiva não queria saber da garupa e obrigou o coitado a conseguir um side-car.
O cara era bem legal e ensinou eu e meu amigo a dirigir aquele trambolho. Ele era bem didático: explicava uma vez (e aquele manete esquerdo com embreagem e câmbio não é muito fácil de dominar) e a gente saía. Claro, com ele na garupa, sendo bem gentil e didático. Qualquer erro (deixar morrer na arrancada ou travar a roda traseira na frenagem e lá vinha um tapa na orelha. Método muito eficiente: o aprendizado foi relâmpago.
Claro que o prazer era limitado: o dono na garupa e aquela trolha do side-car eram mais que complicados de serem empurrados pelos modestos 5 cavalinhos do motor dois-tempos de 150 cm³.
Logo descobri que as curvas para a esquerda eram muito mais emocionantes, pois dava para deitar a Lambrettinha e o side-car saia do chão, tirando a roda do asfalto. A manobra ousada sempre valia o tapão que eu levava na orelha, logo depois da curva.
Já virar para a direita era um lixo. O side atrapalhava e a curva era “quadrada”, com o scooter tentando inclinar e sendo travado pela trolha lateral.
Ou seja, desde a infância descobri que três pontos definem um plano e três rodas definem o pior tipo de veículo que existe. Qualquer encrenca com três rodas — incluindo todos os tipos de triciclo — reúne todos os defeitos de carros e motos em um único veiculo.
Mesmo com os curtos passeios dominicais de Lambretta emprestada, meu sonho aos 11 anos de idade era sair sozinho, pilotar sem side-car, sem tapa na orelha, equilibrando sobre duas rodas e deitando nas curvas.
Aí lembrei do padeiro. Naquela época (final do anos 1950), as casas tinham uma “caixa de correio” ampliada: tinha lugar para a correspondência e também outra grande caixas para pão e leite. Toda manhã, lá estava o pão e uma garrafa de vidro grosso com leite.
Às 6h da manhã, lá vinha o padeiro com sua Lambretta Standard, a 150 D (foto de abertura) um modelo “pelado” mais usado para o trabalho. Era meio desprezado naqueles tempos e hoje é o modelo mais valorizado para coleção. No caso do “meu” padeiro, havia uma enorme caixa de alumínio no lugar do banco e estepe traseiro, que se estendia pelas laterais.
Comecei a estudar a rotina do padeiro. Levantava antes das 6h só para observar seu MO (Modus Operandi). Ele chegava, encostava a Lambretta na calçada, deixava o motorzinho em marcha-lenta, pegava um monte de pães e andava uns 40/50 metros para trás, entregando em cada casa.
Bolei o plano perfeito.
Fiquei escondido atrás do portão, esperei o padeiro ir até a casa mais distante com as mão cheias e “roubei” a Lambrettinha…
Ela já estava funcionando, sentei rapidinho, engatei primeira e acelerei. Só escutei um berro de “Piá filho da pu…” (em curitibanês, piá é sinônimo de moleque). O padeiro saiu correndo atrás, mas já era tarde… Em êxtase, dei a melhor volta no quarteirão da minha vida, deitando a Lambrettinha nas curvas até a caixa de pães raspar no chão. Nos buracos, escutava os pães voando dentro da caixa de alumínio.
Deixei a Lambretta uns 50 metros antes do local que ela estava estacionada, bem a tempo de ver o padeiro virar a esquina de volta, com a língua de fora, depois de correr inutilmente atrás de seu “ganha-pão roubado” (desculpem o trocadalho).
Consegui roubar a Lambretta mais uma vez, depois de uma semana, mas o padeiro ficou esperto. Passou a desligar o motor quando parava perto de casa. A chave servia para trancar o guidão e havia um botão só para desligar. Para funcionar o motorzinho, era só pisar no pedal. E ele não travava o guidão.
Tentei o terceiro roubo. Esperei ele se distanciar, corri para a Lambretta e pisei no pedal. “Desgraçado, deixou engatada”. Enquanto eu achava o ponto morto e pisava desesperado no pedal, o padeiro veio correndo…
Corri mais, levei um pão certeiro na cabeça e escutei: “Piá sem-vergonha, vou contar pra sua mãe”. Contou.
Voltei da escola com cara confiante e, na hora do almoço, minha mãe abre o assunto:
“Você acredita que o padeiro veio reclamar de você. Disse que você anda roubando a Lambretta dele para dar voltas no quarteirão”.
Não neguei. Minha cara de pau não chegava a tanto, senão eu teria me tornado um político. Apenas perguntei: “a senhora acha que eu faria uma coisa dessas?”
Minha santa mãe me olhou , olhou nos meus olhos e sentenciou:
“Eu sempre achei que esse padeiro é meio maluquinho mesmo… Como ele foi inventar uma coisa dessas. Você nem sabe dirigir uma Lambretta”.
Que Deus a tenha e abençoe tanto a ela como ao coitado do padeiro, que também já deve estar em outro plano espiritual.
Nota do Tio Escriba: Esta é uma história real, um pequeno retrato de tempos mais amenos e felizes. A gente levava uns cascudos, sabia que merecia… e se divertia muito. Exatamente por isso, continua tendo um prazer enorme em rodar com scooters ou com minha velha Vespa. Fotos ilustrativas da Pinterest.com, exceto a da minha Vespa Super dos anos 1970 que era 150, mas virou 200.
JS”