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Como surgiu o Motostory

A semente de um projeto entre pai e filho

Texto: Carlãozinho Coachman

Data: 09/08/2016

O ano era 2004 e estávamos em Belo Horizonte para a cerimônia de premiação da Confederação Brasileira de Motociclismo. Dias antes do evento recebi um telefonema do amigo Lincoln Miranda Duarte, então presidente da entidade. “Gostaria de prestar uma homenagem ao seu pai. Me ajuda?” Naquela época Carlão era o 2º Vice Presidente da CBM, eleito por aclamação e unanimidade, e Lincoln queria homenageá-lo por sua colaboração na introdução da pratica do Trial no Brasil. Eu, Carlãozinho Coachman, ex-piloto de Trial, era o Editor Chefe da revista Motociclismo e Gerente de Produtos da Motorpress Brasil Editora. Já fazia algum tempo que tínhamos implantado a premiação Moto de Ouro e dado início às homenagens aos personagens da nossa história.

Auditório repleto para a entrega dos prêmios nacionais daquele ano e presença maciça de pilotos, dirigentes, patrocinadores e personalidades. O Trial, propositadamente, ficou para o final da premiação. Carlão foi chamado ao palco como padrinho da entrega de prêmio aos campeões da temporada.

Carlão Coachman é o padrinho da entrega de prêmios aos Campeões de Trial em 2004. Crédito: Carlãozinho Coachman/Motostory
Carlão Coachman é o padrinho da entrega de prêmios aos Campeões de Trial em 2004. Crédito: Carlãozinho Coachman/Motostory

Troféus entregues e Lincoln pede que ele permaneça. Apagam-se as luzes e fotos antigas dele praticando Trial são mostradas no telão enquanto um bonito texto em sua homenagem era lido.

Carlão Coachman e sua Montesa Cota 247 de 1974. Crédito: Acervo Motostory
Carlão Coachman e sua Montesa Cota 247 de 1974. Crédito: Acervo Motostory
Carlão Coachman pilota sua Montesa Cota 247 nos anos 70: o início do Trial no Brasil. Crédito: Claudio Laranjeira/Acervo Motostory
Carlão Coachman pilota sua Montesa Cota 247 nos anos 70: o início do Trial no Brasil. Crédito: Claudio Laranjeira/Acervo Motostory

 

Carlão Coachman pilota sua Montesa Cota 247 nos anos 70: o início do Trial no Brasil. Crédito: Claudio Laranjeira/Acervo Motostory
Carlão Coachman pilota sua Montesa Cota 247 nos anos 70: o início do Trial no Brasil. Crédito: Claudio Laranjeira/Acervo Motostory

O Campeonato Brasileiro de Trial completava naquela data 18 anos e Carlão era reconhecido como personagem central na introdução da modalidade, ainda nos anos 70, e um de seus maiores incentivadores.

Lincoln Miranda Duarte entrega a Carlão Coachman homenagem pelos 18 anos de Campeonato Brasileiro de Trial . Crédito: Carlãozinho Coachman/Acervo Motostory
Lincoln Miranda Duarte entrega a Carlão Coachman homenagem pelos 18 anos de Campeonato Brasileiro de Trial . Crédito: Carlãozinho Coachman/Acervo Motostory

Aplausos de uma plateia lotada que, de pé, reverenciava o amigo mais velho. Carlão era figura conhecida de todos, pois militava desde os anos 70 na Federação Paulista de Motociclismo e na própria CBM, tendo começado sua participação nas entidades quando ainda eram comandadas por Eloi Gogliano, de quem foi grande amigo. Desde aquela época, aquele dentista apaixonado por motocicletas e motociclistas, dedicava boa parte de seu tempo a ajudar na organização do esporte. Apaixonado por gente e moto, passava praticamente todos os finais de semana ou sobre a moto, fazendo trilhas nos arredores de São Paulo, ou nos eventos, ajudando a organizar um pouco de tudo: Motocross, Trial, Motovelocidade, Rally, Enduro FIM e de Regularidade, seminários nacionais e internacionais (também era comissário da FIM – Federação Internacional de Motociclismo) entre muitas outras atribuições.

Não tinha naquele auditório quem não conhecesse o Carlão, mas, para minha surpresa, muitos não sabiam de sua ligação com o Trial. Justo com o Trial! Esta certo que aqui no Brasil e no Mundo, o Trial ainda é considerado por muitos uma modalidade menor em termos de projeção, mas não saber do envolvimento dele com a modalidade soou como um alerta. Estávamos no coração do motociclismo de competição brasileiro. Como não saber?

Naquela altura Carlão já lutava com uma deficiência renal aguda e as sessões de Hemodiálise aconteciam três vezes por semana. Morávamos no mesmo prédio no Itaim, em São Paulo. Ele com minha irmã e eu já casado, com a Karla. Era segunda feira e eu descansava em casa depois de mais um final de semana de trabalho. A campainha toca e entra o pai, cabisbaixo. Ops! O consultório estava fechado há alguns anos e a odontologia, outra de suas paixões, já não ocupava mais a vida diária. Com as mãos segurando o queixo, veio a bomba: “Filho, o que vou fazer da minha vida?”

Respirei fundo para não engasgar. Olhei para o meu pai, o amigo, o parceiro de vida, de tantas viagens, trilhas e competições, o herói. Afinal, se me conhecem como Carlãozinho até hoje, é por causa desta relação muito maior do que a de um pai e um filho. Respondi: “Calma! Você tem tanta coisa pra fazer. Como assim, o que fazer da minha vida?!?”

A falta da profissão e as limitações impostas pela hemodiálise estavam cobrando um preço alto. Foi uma conversa longa, emocionada, mas a verdadeira resposta para aquela pergunta não surgiu na hora. “O que fazer da minha vida?”… Aquilo soou como uma sirene de um carro do corpo de bombeiros pedindo passagem, mas a pergunta ficou no ar. Eu ainda estava sem uma resposta, uma meta para partilhar, um objetivo claro para propor para aquele homem de pouco mais de 60 anos, que clamava por ajuda.

Meu herói era um erudito. Apreciava e conhecia a boa música como poucos. Era capaz de falar por horas sobre Jazz, musica popular, (adorava chorinho) ou musica clássica, descrevendo autores, intérpretes, gravações e apresentações. A discoteca era composta por quase 1000 LPs (os famosos discos de vinil) com o melhor de cada tema. A biblioteca, com títulos em português, inglês, italiano, espanhol e francês, tinha um pouco de tudo, mas especialmente boas histórias e muito motor. Motores, automóveis, Formula 1, motocicletas e motociclismo eram seus temas preferidos. Não tinham segredos para ele.

O que propor então?

Na minha memória ainda estavam gravadas as palavras escritas por meu pai quando da morte de seu grande amigo Gualtiero Tognocchi: “Se eu soubesse metade do que ele esqueceu, eu seria um grande, um sábio.” Era assim que eu me sentia…

Gualtiero Tognocchi, Carlão, Karla e Carlãozinho Coachman juntos em 1999. Crédito: Caio Mattos/Revista Motociclismo/Motostory
Gualtiero Tognocchi, Carlão, Karla e Carlãozinho Coachman juntos em 1999. Crédito: Caio Mattos/Revista Motociclismo/Motostory

Poucos dias depois eu me dirigia para a editora para mais uma tarefa. Era uma das poucas vezes em que ia ao trabalho de carro, pois quase sempre estava de moto ou bicicleta. Freei abruptamente procurando por uma vaga para estacionar. Quase bati. Peguei meu celular e liguei pra ele. “Já sei. Vamos escrever um livro… ou melhor… você vai fazer um livro, um trabalho sobre a História da Motocicleta no Brasil… um livro de memórias… Mais tarde falamos sobre o assunto. Assim que eu chegar em casa passo ai.”

Foi um dia longo, lento e pouco produtivo, pois eu não via a hora de voltar pra casa. Naquela noite, um pouco mais calmo, conversamos sobre a ideia. Publicarmos um livro de memórias do Carlão, relatando sua relação com as motos, sua grande paixão. Era chegada a hora de contar esta história. Era necessário.

Não foi preciso muito para convencê-lo e os olhos voltaram a brilhar. “Vou fazer umas listas e ligar para uns amigos. Vou fazer listas de pessoas, eventos, acontecimentos, motos… listas de tudo. Vou começar umas conversas para ajudar a puxar na memória as lembranças, para ouvir de outros o que meus olhos viram ou meus ouvidos escutaram, mas que talvez a memória tenha escondido. Vamos fazer.”

Assim, Carlão passou 2005 recolhendo recordações, anotando, encontrando pessoas e até gravando algumas conversas, ao mesmo tempo em que a saúde se deteriorava rápido. No dia 4 de março de 2006, no Ginásio da Portuguesa, em São Paulo, fui um dos responsáveis pela realização de uma etapa do Campeonato Mundial de Trial Indoor. Mais uma vez Carlão foi homenageado. No dia 11, em Buenos Aires, Carlão ganhou de presente o colete do Multi-Campeão Mundial da modalidade Doug Lampkin, uma deferência pelos serviços prestados ao Trial Latino Americano.

O colete de Doug Lampkin, reportagem e credencial do Mundial de Trial Indoor em 2006 na Portuguesa. Crédito: Carlãozinho Coachman/Motostory
O colete de Doug Lampkin, reportagem e credencial do Mundial de Trial Indoor em 2006 na Portuguesa. Crédito: Carlãozinho Coachman/Motostory

Em Abril de 2006, logo após completar 63 anos, foi preciso realizar uma ampla cirurgia. Os rins já não aguantavam mais. Depois de quase 30 dias hospitalizado, Carlão não resistiu. Foi no dia 22 de maio daquele ano e levaria consigo uma parte importante da história da motocicleta em nosso país. Ele, e tantos outros que partiram antes dele, ou depois, também levaram consigo memórias e guardados, um pedaço da história, deixando apenas uma certeza: tudo aquilo que não resgatarmos, guardarmos e levarmos adiante irá se perder.

Assim surgiu o projeto MOTOSTORY – A HISTÓRIA DA MOTOCICLETA NO BRASIL!, criado para celebrar a vida e as histórias daqueles que ajudaram a construir o 5º maior mercado de motocicletas do mundo. Uma epopeia que teve início nos primeiros anos do século XX, quando aportaram por aqui as primeiras motocicletas, e que segue até os dias de hoje, quando já somos mais de 25 milhões de usuários de motocicletas em todo país.

 

 

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